29 maio 2011

Além-mundos


Imagens da exposição: O Mundo Mágico de Escher - CCBB-SP


"Um dia, Zaratustra também elevou a sua ilusão mais além da vida dos homens, à maneira de todos os que crêem em além-mundos.
Obra de um deus dolente e atormentado me parecia então o mundo.

Sonho me parecia, e ficção de um deus: vapor colorido ante os olhos de um divino descontente.
Bem e mal, alegria e desgosto, eu e tu, vapor colorido me parecia tudo isso ante os olhos criadores. O criador quis desviar de si mesmo o olhar... e criou o mundo.
Para quem sofre, é uma alegria inebriante desviar o olhar de seu sofrimento e esquecer de si mesmo. Alegria inebriante e esquecimento de si mesmo me pareceu um dia o mundo.
Este mundo, o eternamente imperfeito, me pareceu um dia imagem, e imagem imperfeita, de uma eterna contradição, e uma alegria inebriante para o seu imperfeito criador.
Da mesma maneira projetei eu também a minha ilusão mais para além da vida dos homens, à maneira de todos os que crêem em além-mundos. Além dos homens, realmente? Ai! meus irmãos! Este deus que eu criei era obra humana e humano delírio, igual a todos os deuses.

Era homem, tão somente um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma saía das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e na verdade nunca veio do outro mundo.
Que ocorreu, meus irmãos? Eu, que sofria, dominei-me; levei a minha própria cinza para a montanha; inventei para mim uma chama mais clara. E vede! O fantasma ausentou-se!

Agora que estou curado, seria para mim um sofrimento e um tormento crer em semelhantes fantasmas: seria um sofrimento e uma humilhação. Assim falo eu aos que crêem em além-mundos.
Sofrimento e impotência: eis o que criou todos os além-mundos, e este breve delírio da felicidade que só conhece quem mais sofre.
A fadiga, que de um salto quer atingir o extremo, um salto mortal; uma fadiga pobre e ignorante, relutante em querer algo mais; foi ela que criou todos os deuses e todos os além-mundos.

Acreditai-me, meus irmãos! Foi o corpo que desesperou do corpo: tateou com os dedos do espírito transtornado as últimas paredes.
Creiam-me, meus irmãos! Foi o corpo que desesperou da terra: ouviu falar as entranhas do ser.
Quis então que sua cabeça transpassasse as últimas paredes, e não só a cabeça: ele mesmo quis passar para o 'outro mundo'. O 'outro mundo', porém, esse mundo desumanizado e inumano, que é um nada celeste, está oculto aos homens, e as entranhas do ser não falam ao homem, a não ser como homem.
É realmente difícil demonstrar todo ser, e difícil é fazê-lo falar. Dizei-me porém, irmãos: a mais estranha de todas as coisas não será a melhor demonstrada?
E este Eu que cria, que quer, e que dá a medida e o valor  das coisas, este Eu, e a contradição e confusão do Eu, falam com a maior lealdade do ser.
E este lealíssimo, o Eu, fala do corpo, e quer o corpo, embora sonhe e divague e esvoace com as asas partidas.
O Eu aprende a falar cada vez mais lealmente, e, quanto mais aprende, mais palavras acha para honrar o corpo e a terra."

Trecho do livro "Assim Falou Zaratustra" de Friedrich Nietzsche - Editora Martin Claret, 1999, pg 41 e 42