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07 abril 2012

La divina commedia

CANTO IV
Violento  estrondo interrompeu aquele torpor profundo, desportando-me qual homem que em sobressalto acorda. Movi o olhar pelo que havia ao meu redor, ao longe e perto. De pé me ergui, procurando conhecer o lugar onde me encontrava. Eis a verdade: descobri-me à borda de insondável e tenebroso abismo, do qual subiam brados e infindos ais. Tão escuro, profundo e nebuloso era tal pélago que, por mais aceso eu nele fixasse o olhar, coisa alguma reconhecia.
"Agora, deçamos ao mundo das trevas", principiou a dizer o Poeta, soturnamente. "Irei à frente, serás o segundo."
Notando no seu rosto palidez extrema, perguntei: "Como poderei seguir-te, se te vejo vencido pelo temor, a ti de quem sempre espero ânimo?" Respondeu-me: "O que vês estampado em meu rosto é piedade e não receio, como pensaste. Mas vamos, que a viagem é comprida".
Ele entrou, e assim me fez entrar no primeiro círculo, onde o abismo principal principia a estreitar-se. Ouvi, não o costumeiro e lastimoso chorar, mas apenas suspiros que ondulavam no inteiro espaço qual brisa leve. Provinham de um sofrer sem amargura, padecido por grande turba, na qual se misturavam homens, mulheres e crianças.

O grito - Edvard Münch

Disse- me o bom do Mestre: " perguntas que espíritos são estes? É bom que os conheças, antes de seguir adiante. Não pecaram, mas, embora possuindo méritos para entrarem no Céu, faltou-lhes o batismo, umbral da Fé em que, ditoso, crês. Viveram antes do cristianismo, portanto não tributaram a Deus a adoração devida. Eu sou um dos que por este modo penam. Por tal motivo, e não por qualquer defeito, perdemos o Paraíso. A nossa pena é simplesmente esta: arder em desejo, sem a esperança de saciá-lo".
Ouvindo-o, profunda mágoa tomou-me o coração, no que porém fui consolado pelo alteroso valor de muitos espíritos que no Limbo conheci suspensos.
"Dize-me, ó Mestre, dize-me, ó Guia", pedi, buscando robustecer minha fé contra todas as possibilidades de erro no interpretar as coisas que via, "jamais alguém daqui subiu aos Céus, por mérito próprio ou alheio?"
E ele, que bem interpretara a pergunta aflita, respondeu: "Havia pouco que a este sítio eu baixara, quando vi chegar possante guerreiro¹ cingido por triunfal coroa, Libertou das sombras a alma do nosso primeiro pai, e a de Abel, a de Noé, a de Moisés que por Ele legislara e a Ele odedecera, a do patriarca Abraão, a do Rei Davi, Israel com seus descendentes², e de Raquel, por quem batalhou e sofreu tanto. Muitos outros retirou do Limbo para elevar à glória celeste. Antes de Ele vir, no entanto, jamais alguém fora salvo".

¹ Jesus Cristo
² Jacó e Isaac

Olhar- René Magritte
Não havíamos deixado de marchar enquanto ele falava; assim, fôramos penetrando a espessa selva de almas, sempre mais e mais compacta. Não estávamos ainda longe do ponto de partida quando vislumbrei fulgor estranho, que o hemisfério escuro aclarou um pouco³. A certa distância do clarão, pude perceber que caminhávamos para o centro do recinto, onde, à parte encontram-se os nobres pensadores pagãos.
"Ó tu, honra da ciência e da arte, quem são estes que tamanho privilégio alcançaram da turba mantendo-se afastados?" Respondeu-me:
"Por tal forma lá na Terra os seus nomes foram engrandecidos por justa fama, que neste sítio, como vês, são preferidos".
Nisto, ouço, em voz bem clara, dizerem: "Honrai ao altíssimo Poeta; voltou ao nosso convívio a sua sombra, que ausente esteve". Quando a voz calou e silêncio se fez, quatro sombras avançaram em nossa direção. Nem tristeza nem alegria revelavam nos semblantes.
Meu bom Mestre disse-me: "Observa esse que, parecendo reinar sobre os outros, vem à frente deles, empunhando espada. É Homero, dos poetas o soberano. O segundo é o satírico Horácio, que logo ao lado tem Ovídio, vindo por fim Lucano. A voz isolada, que recém ouvimos, é deles, e com tal honra a mim prestando, nobre ação por si vão praticando",
Assim, vi reunida a formosa escola poética desse cantor de tão alto nome que sobre os demais nomes sempre está pairando, qual águia em pleno vôo erguida. Havendo entre si tomado decisão, a mim endereçaram gesto amigável. Vírgilio sorriu, dessa cortesia cativo. Mais alta honra ainda a mim prestaram, quando fizeram-me reunir ao seu alto grêmio, dando-me embora o sexto lugar na comitiva. Caminhamos ao encontro do clarão forte, discorrendo sobre temas que numerar aqui não entendo, por mais sublimes a mim então me parecessem.

³ A luz da filosofia, capaz de iluminar até mesmo um trecho do Inferno. 

Eu e a Aldeia - Marc Chagall
Junto chegamos a alteroso castelo¹¹, rodeado por sete fortes muros e cingido por ribeiro tão estreito quão formoso. Atravessamo-lo como se terra firme fossem suas águas, e cruzei, sempre em tão ilustre companhia, sete portas, chegando a um prado de alegre verdor. Por ali vagavam sombras graves, de magestoso aspecto, que raramente falavam e o faziam sempre com olhos tardos e voz suave. Colocamo-nos em lugar aberto, iluminado e alto, de onde se via a inteira turba daquelas nobres almas. Sobre o verde esmaltado da relva eu divisava egrégias sombras, tão ilustres que ainda agora me comove o recordar quanta alegria, ao vê-las, eu provava.
Percebi Electra, acompanhada por muitos guerreiros, entre os quais Enéias e Heitor; vi César, que para nós dirigia flamejante olhar. Vi também Camila e Pentesileia e o Rei Latino eternecidamente sentado junto de Lavínia. Descobri ainda aquele Bruto que expulsou Tarquínio; e Lucrécia, e Júlia, e Márcia, e Cornélia. Afastado de todos, Saladino. Tomado de respeito, levantei o olhar, pois vislumbrei, por filósos rodeado, o mestre de todos quantos pelo saber se distinguiram¹². Os demais o observam e homenageiam; Platão e Sócrates estavam entre os outros e eram os que mais próximo do mestre se achavam. Demócrito, o que ensinou haver sido o mundo criado por acaso, e Diógenes, Anaxágoras, Tales, Empédocles, Heráclito e Zenão, ali também estavam. E ainda Dioscórides, que afincadamente estudara a Natureza, e Orfeu, e Túlio, o eloquente; e Lino e Sêneca, o moralista. E mais Euclides, o geômetra, Ptolomeu, Hipócrates, Avicena, Galeno, Averroés, o autor de grandes ensaios de Medicina. Relação de todos quantos vi não posso aqui deixar, pois bem longa seria ela e a ser sucinto sontinuamente me obrigo.
Nosso grupo de seis então se desfez. Levou-me o Guia, daquele recinto silente, a outro sítio onde gira um ar fremente e onde luz alguma alumia.


¹¹É o edifício da filosofia. Os sete muros seriam virtudes ( prudência, justiça, fortaleza, temperança, poder, sabedoria, compreensão); as artes liberais (gramática, lógica, retórica, música, aritmética, geometria e astronomia)
¹² Aristóteles



Hieronymus Bosch



18 março 2012

Existe amor em SP?

Lilian Higa
Jean Michel Basquiat

Lilian Higa

Esperando amor no matadouro






Bois no matadouro, galinhas engaioladas para o abate, sou solidária a dor de vocês porque  sou como vocês,




Lilian Higa

também sou impedida de manifestar meu comportamento natural, por isso nossa neurose canibalística, nossa apatia, nosso alto nível de estresse.

Lilian Higa

Nós que somos impedidas de ciscar, abrir as asas e alçar pequenos voos, não podemos ser nós mesmas, será que se um dia saírmos daqui nos lembraremos de quem nós somos?
Vilma Araújo




29 dezembro 2011

As janelas

Olhando de fora, através de uma janela aberta, nunca se vê tantas coisas como quando se olha por uma janela fechada.

Ubatuba-SP, Praia do Félix-23/12/2011

Não existe cena, mais profunda, mais misteriosa, mais fértil, mais tenebrosa, mais encantada, que uma janela iluminada pela luz de um candelabro.

Ubatuba-SP, Praia do Félix-23/12/2011

O que a gente vê com a luz do Sol é sempre menos interessante do que o que se passa atrás de uma vidraça. Nesse buraco negro ou luminoso a vida passa, alucina e sofre.

Ubatuba-SP, Itaguá-22/12/2011

Além das frestas, das sombras do telhado, vejo uma mulher antiga, envelhecida, sem fortuna, sempre debruçada sobre alguma coisa e confinada dentro da casa.

Ubatuba-SP, Praia do Félix-23/12/2011


Observo sua fisionomia, observo sua vestimenta, seus gestos, e com esse quase nada, re-escrevo a história dessa mulher, ou melhor ainda, a sua lenda, que às vezes reconto a mim mesmo, em lágrimas.


Ubatuba-SP, Praia Vermelha do Norte-25/12/2011

Se fosse um pobre velho, eu também teria narrado a cena com igual facilidade.
E deito-me, com orgulho de ter sentido a vida e o sofrimento dos outros como se fossem meus.

Ubatuba-SP, Praia do Félix-23/12/2011

Pois então, você me dirá: "Será que essa lenda é verdadeira?".
Que importa que a realidade seja fora de mim, se ela me ajuda a viver, a sentir o que eu sou e quem eu sou?

Ubatuba-SP, Itaguá-22/12/2011

Charles Baudelaire no livro O DESEJO DE PINTAR  e outros poemas em prosa. (Simbolismo)

18 dezembro 2011

Cultura


Etmologicamente falando, é um conceito derivado do de natureza. Um de seus significados originais é" lavoura" ou "cultivo agrícola", o cultivo do que cresce naturalmente.


A palavra cultura se origina do verbo latino colo, que significou morar, ocupar, cultivar, lavrar a terra. Transposto para o passado, o adjetivo cultus era atribuído, na Roma arcaica, ao campo já cultivado, à terra que foi lavrada, não apenas no tempo presente, mas sucessivamente, por várias gerações.

Bosch, Hieronymus - "The Seven Deady Sins", c.1485.
A natureza humana não é exatamente o mesmo que uma plantação de beterrabas, mas, como uma plantação precisa ser cultivada - de modo que, assim como a palavra "cultura" nos tranfere do natural para o espiritual, também sugere uma afinidade entre eles.

Picasso, Pablo -" Les Demoiselles d'Avignon", 1907.

Nós nos assemelhamos à natureza, visto que, como ela, temos de ser moldados à força, mas diferimos dela uma vez que podemos fazer isso a nós mesmos, introduzindo assim no mundo um grau de auto-reflexividade a que o resto da natureza não pode aspirar.
Duchamp, Marcel - "Fountain", 1964 (replica of 1917 original)
São os interesses políticos que, geralmente, governam os culturais, e ao fazer isso definem uma versão particular de humanidade.
Kandinsky, Wassily - "Composition VI", 1913

A cultura como orgânica, assim como a cultura como civilidade, paira indecisamente entre faro e valor. Em um sentido, ela não faz mais do que designar uma forma de vida tradicional...
Mas já que a comunidade, tradição, ter raízes, solidariedade são noções que se supõe que aprovemos,

Valentim, Rubem - "Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira", 1978

ou pelo menos supunha-se até o advento do pós-modernismo, poder-se-ia pensar haver algo positivo na mera existência de uma tal forma de vida.

LAM, Wilfredo - "Les noces", 1947

Ou, melhor dizendo, no simples fato da pluradidade de tais formas. É essa fusão do descritivo e do normativo, conservada tanto de "civilização" quanto do sentido universalista de "cultura", que despontará na nossa própria época sob roupagem de relativismo cultural.



Numa sociedade civil, os indivíduos vivem num estado de antagonismo crônico, impelidos por interesses opostos; mas o Estado é aquele âmbito transcendente no qual essas divisões podem ser harmoniosamente reconciliadas.


Para que isso aconteça, contudo, o Estado já tem que ter estado em atividade na sociedade, e esse processo é o que conhecemos como cultura. A cultura é uma espécie de pedagogia ética que nos torna aptos para a cidadania política ao libertar o eu ideal ou coletivo escondido dentro de cada um de nós, um eu que encontra sua representação suprema no âmbito universal do Estado.
Miranda, Walter - "Idolatria Tecnológica VI", 2008

Se o real contém aquilo que o contradiz, então o termo "cultura" está determinado a olhar em duas direções opostas. A descontrução, que mostra como uma situação acaba forçosamente violando a sua própria lógica justamente na tentativa de aderir a ela, é simplesmente um nome mais recente para essa noção tradicional de crítica imanente. Para os românticos radicais, a arte, a imaginação, a cultura folclórica ou comunidades "primitivas" são sinais de uma energia criativa que deve ser estendida à sociedade política como um todo. Para o marxismo, que surge na esteira do romantismo, ela é uma forma bem menos exaltada de energia criativa, aquela da classe operária, que pode transfigurar a própria ordem social da qual é o produto.


*Trechos do livro: A Ideia de Cultura de Terry Eagleton



20 novembro 2011

Pintura



Walter Miranda

Sempre compreendo o que faço depois que já fiz.
O que sempre faço nem seja uma aplicação de estudos.
É sempre uma descoberta.
Não é nada procurado.
É achado mesmo.
Como se andasse num brejo e desse no sapo.
Acho que é defeito de nascença isso.
 Igual como a gente nascesse de quatro olhares ou de quatro orelhas.




Um dia tentei desenhar as formas da Manhã sem lápis.
Já pensou?
 Por primeiro havia que humanizar a Manhã.
Torná-la biológica.
Fazê-la mulher.
Antesmente eu tentara coisificar as pessoas e humanizar as coisas.
Porém humanizar o tempo!
Uma parte do tempo?
 Era dose.
Entretanto eu tentei.


Ipiranga III - 1997

Pintei sem lápis a Manhã de pernas para o Sol.
 A manhã era mulher e estava de pernas abertas para o Sol.
Na ocasião eu aprendera em Vieira (Padre Antônio, 1604, Lisboa) eu aprendera que as imagens pintadas com palavras eram para se ver de ouvir.
Então seria o caso de se ouvir a frase pra se enxergar a Manhã de pernas abertas?

Idolatria Tecnológica - VI - 2008

Estava humanizada essa beleza de tempo.
 E com os seus passarinhos, e as águas e o Sol a fecundar o trecho.
Arrisquei fazer isso com a Manhã, na cega.
 Depois que meu avô me ensinou que eu pintara a imagem erótica da Manhã.
 Isso fora.

Manoel de Barros - Memórias Inventadas - 2008


17 outubro 2011

EM NOME DOS ARTISTAS

"...Assim, o corpo sem órgãos nunca é o seu, o meu...


Damien Hirst - Adam and Eve exposed, 2004



É sempre um corpo. Ele não é mais projetivo do que regressivo. É uma involução, mas uma involução criativa e sempre contemporânea.
Damien Hirst - Adam and Eve exposed, 2004
Os órgãos se distribuiem sobre o CsO; mas, justamente, eles se distribuem nele independentemente da forma do organismo; as formas tornam-se contingentes, os órgãos não são mais do que intensidades produzidas, fluxos, limiares e gradientes.
Mathew Ronay - Falling... Spilling... Sprauling. 2005
You got to let it go...bro...did i do this because my daddy did it?

"Um" ventre, "um" olho, "uma" boca: Ao artigo indefinido nada falta, ele não é indeterminado ou indiferenciado, mas exprime a pura determinação de intensidade, a diferença intensiva.



Ao artigo indefinido nada falta, ele não é indeterminado ou indiferenciado, mas exprime pura determinação de intensidade, a diferença intensiva. O artigo indefinido é o condutor do desejo. Não se trata absolutamente de um corpo despedaçado, esfacelado, ou de órgãos se corpos (OsC). O CsO é exatamente o contrário. Não há órgãos despedaçados em relação a uma unidade perdida, nem retorno ao indiferenciado em relação a uma totalidade diferenciável.


Damien Hirst - Mother and Child divided, 1993

Existe, isto sim, distribuição das razões intensivas de órgãos, com seus artigos positivos indefinidos, no interior de um coletivo ou de uma multiplicidade, num agenciamento e segundo conexões maquínicas operando sobre um CsO. Logos spermaticos.


                                        Dan Colin - Eu, Jesus e as Crianças, 2001-2003

O erro da psicanálise é o de ter compreendido os fenômenos de corpos sem órgãos como regressões, projeções, fantasmas, em função de uma imagem do corpo. Por isso, ela só percebia o avesso das coisas, substituía um mapa mundial de intensidades por fotos de família, recordações de infância e objetos parciais. Ela nada compreendia acerca do ovo, nem dos artigos indefinidos, nem sobre a contemporaneidade de um meio que não pára de se fazer.


                                        Mike Bouchet - Top Cruise, 2005

O CsO é desejo, é ele e por ele que se deseja. Não somente porque ele é o plano de consistência ou o campo de imanência do desejo; mas inclusive quando cai no vazio da desestratificação brutal, ou bem na proliferação do estrato canceroso, ele permanece desejo. O desejo vai até aí: às vezes desejar seu próprio aniquilamento, às vezes desejar aquilo que tem o poder de aniquilar. Desejo de dinheiro, desejo de exército, de polícia e de Estado, desejo-fascista, inclusive o fascismo é desejo . Há desejo toda vez que há constituição de um CsO numa relação ou em outra. Não é problema de ideologia, mas de pura matéria, fenômeno de matéria física, biológica, psíquica, social ou cósmica."

trecho do livro: MIL PLATÔS - CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA (página 28) de Gilles Deleuze e Félix Guattari







    











18 setembro 2011

Estou sendo


1º lugar no Festival de Vídeo do CEU Sapopemba - Jéssica Moura
 "...Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.


- Por que é que você olha tão demoradamente cada pessoa?
Ela corou:
- Não sabia que você estava me observando. Não é por nada que olho: é que eu gosto de ver as pessoas sendo.



Então estranhou-se a si própria e isso parecia levá-la a uma vertigem. É que ela própria, por estranhar-se, estava sendo. Mesmo arriscando que Ulisses percebesse, disse-lhe bem baixo:
- Estou sendo...
- Como? Perguntou ele àquele sussuro de voz de Lóri.
- Nada, não importa.
- Importa sim. Quer fazer o favor de repetir?
Ela se tornou mais humilde, porque já perdera o estranho e encantado momento em que estivera sendo:
- Eu disse para você - Ulisses, estou sendo.
Ele examinou-a e por um momento estranhou-a, aquele rosto familiar de mulher. Ele se estranhou, e entendeu Lóri: ele estava sendo.


Ficaram calados como se os dois pela primeira vez se tivessem encontrado. Estavam sendo.
- Eu também, disse baixo Ulisses.
Ambos sabiam que esse era um grande passo dado na aprendizagem. E não havia  perigo de gastar este sentimento com medo de perdê-lo, porque ser era infinito, de um infinito de ondas do mar. Eu estou sendo, dizia a árvore do jardim.



Eu estou sendo, disse a água verde na piscina. Eu estou sendo, disse o mar azul do Mediterrâneo. Eu estou sendo, disse o nosso mar verde traiçoeiro. Eu estou sendo, disse a aranha, e imobilizou a presa com seu veneno. Eu estou sendo, disse uma criança que escorregara nos ladrilhos do chão e gritara assustada: mamãe! Eu estou sendo, disse a mãe que tinha um filho que esgorregava nos ladrilhos que circundavam a piscina. Mas a luz se aquietava para a noite e eles estranharam, a luz crepuscular. Lóri estava fascinada pelo encontro de si mesma, ela se fascinava e quase se hipnotizava.



Ali estavam. Até que a luz que precedia o crepúsculo foi se esgarçando entre penumbras e maiores transparências, e quase ausência, sem que aquela espécie de neutralidade fosse ainda tocada pela escuridão: não parecia crespúsculo e sim o mais imponderável de um amanhecer:


Tudo aquilo era absolutamente impossível, por isso é que Lóri sabia que via. Se fosse o razoável, ela de nada saberia.
E quando tudo começou a ficar inacreditável, a noite desceu.

Trecho do livro: UMA APRENDIZAGEM OU LIVRO DOS PRAZERES de Clarice Lispector - páginas 71 e 72

10 julho 2011

Comfortably Numb

"...Quando eu era criança tive uma visão fugaz
Pelo canto do olho
Eu virei para olhar mas tinha sumido
Eu não pude tocar na ferida
A criança cresceu
O sonho se foi
E eu me tornei
Confortavelmente entorpecido..."
"...Ei você,
Você me ajudaria a carregar a pedra?
Abra seu coração, estou indo para casa

Mas isso era apenas fantasia
O muro era muito alto, como você pode ver
Não importava o quanto ele tentasse, ele não conseguia libertar-se
E os vermes comeram seu cérebro..."
"...O que devemos usar para preencher espaços vazios?
Onde costumávamos falar?
Como devo preencher os últimos lugares?
Como posso completar o muro?...
"...Tem algúem aí fora?
Tem algúem aí fora?
Tem algúem aí fora?
Tem algúem aí fora?..."
"...Você já viu os apavorados?
Você já ouviu as bombas caindo?
Você já se perguntou
Por que tivemos que correr em busca de abrigo
Quando a promessa de um admirável mundo novo
Desfralda sob um limpo céu azul?
Você já viu os apavorados?
Você já ouviu as bombas caindo?
As chamas já estão todas muito distantes
Mas a dor persiste
Adeus céu azul
Adeus céu azul
Adeus..."
"...Então,
Então você acha que consegue distinguir
O paraíso do inferno
Céus azuis da dor
Você consegue distinguir um campo verde
de um frio trilho de aço?
Um sorriso de um véu?
Você acha que consegue distinguir?

Fizeram você trocar
Seus heróis por fantasmas?
Cinzas quentes por árvores?
Ar quente por uma brisa fria?
Conforto frio por mudança?
Você trocou
Um papel de coadjuvante na guerra
Por um papel principal numa cela?

Como eu queria, como eu queria que você estivesse aqui
Somos apenas duas almas perdidas
Nadando num aquário
Ano após ano
Correndo sobre este mesmo velho chão
O que encontramos?
Os mesmos velhos medos
Queria que você estivesse aqui..."



Wilfredo Lam - La Rumeur de la Terre,1950
 "Bastava um Elmo e uma algibeira cheia de areia para existir em um lugar inóspito... Mas todas as mentes estariam interligadas no reino do sonhar? Recolhendo apenas suas asas de tudo que existiu... Pálida e desalinhada eram as almas na morada dos deuses de barro...Mediante à todas as montanhas que devemos escalar para ser chamados de homens e tudo que acreditamos e que matamos para então a vida nos adaptarmos... Não importa o epílogo... Pois existem coisas simples que nos define em existir..."
Sonia Alves







29 maio 2011

Além-mundos


Imagens da exposição: O Mundo Mágico de Escher - CCBB-SP


"Um dia, Zaratustra também elevou a sua ilusão mais além da vida dos homens, à maneira de todos os que crêem em além-mundos.
Obra de um deus dolente e atormentado me parecia então o mundo.

Sonho me parecia, e ficção de um deus: vapor colorido ante os olhos de um divino descontente.
Bem e mal, alegria e desgosto, eu e tu, vapor colorido me parecia tudo isso ante os olhos criadores. O criador quis desviar de si mesmo o olhar... e criou o mundo.
Para quem sofre, é uma alegria inebriante desviar o olhar de seu sofrimento e esquecer de si mesmo. Alegria inebriante e esquecimento de si mesmo me pareceu um dia o mundo.
Este mundo, o eternamente imperfeito, me pareceu um dia imagem, e imagem imperfeita, de uma eterna contradição, e uma alegria inebriante para o seu imperfeito criador.
Da mesma maneira projetei eu também a minha ilusão mais para além da vida dos homens, à maneira de todos os que crêem em além-mundos. Além dos homens, realmente? Ai! meus irmãos! Este deus que eu criei era obra humana e humano delírio, igual a todos os deuses.

Era homem, tão somente um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma saía das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e na verdade nunca veio do outro mundo.
Que ocorreu, meus irmãos? Eu, que sofria, dominei-me; levei a minha própria cinza para a montanha; inventei para mim uma chama mais clara. E vede! O fantasma ausentou-se!

Agora que estou curado, seria para mim um sofrimento e um tormento crer em semelhantes fantasmas: seria um sofrimento e uma humilhação. Assim falo eu aos que crêem em além-mundos.
Sofrimento e impotência: eis o que criou todos os além-mundos, e este breve delírio da felicidade que só conhece quem mais sofre.
A fadiga, que de um salto quer atingir o extremo, um salto mortal; uma fadiga pobre e ignorante, relutante em querer algo mais; foi ela que criou todos os deuses e todos os além-mundos.

Acreditai-me, meus irmãos! Foi o corpo que desesperou do corpo: tateou com os dedos do espírito transtornado as últimas paredes.
Creiam-me, meus irmãos! Foi o corpo que desesperou da terra: ouviu falar as entranhas do ser.
Quis então que sua cabeça transpassasse as últimas paredes, e não só a cabeça: ele mesmo quis passar para o 'outro mundo'. O 'outro mundo', porém, esse mundo desumanizado e inumano, que é um nada celeste, está oculto aos homens, e as entranhas do ser não falam ao homem, a não ser como homem.
É realmente difícil demonstrar todo ser, e difícil é fazê-lo falar. Dizei-me porém, irmãos: a mais estranha de todas as coisas não será a melhor demonstrada?
E este Eu que cria, que quer, e que dá a medida e o valor  das coisas, este Eu, e a contradição e confusão do Eu, falam com a maior lealdade do ser.
E este lealíssimo, o Eu, fala do corpo, e quer o corpo, embora sonhe e divague e esvoace com as asas partidas.
O Eu aprende a falar cada vez mais lealmente, e, quanto mais aprende, mais palavras acha para honrar o corpo e a terra."

Trecho do livro "Assim Falou Zaratustra" de Friedrich Nietzsche - Editora Martin Claret, 1999, pg 41 e 42