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07 abril 2012

La divina commedia

CANTO IV
Violento  estrondo interrompeu aquele torpor profundo, desportando-me qual homem que em sobressalto acorda. Movi o olhar pelo que havia ao meu redor, ao longe e perto. De pé me ergui, procurando conhecer o lugar onde me encontrava. Eis a verdade: descobri-me à borda de insondável e tenebroso abismo, do qual subiam brados e infindos ais. Tão escuro, profundo e nebuloso era tal pélago que, por mais aceso eu nele fixasse o olhar, coisa alguma reconhecia.
"Agora, deçamos ao mundo das trevas", principiou a dizer o Poeta, soturnamente. "Irei à frente, serás o segundo."
Notando no seu rosto palidez extrema, perguntei: "Como poderei seguir-te, se te vejo vencido pelo temor, a ti de quem sempre espero ânimo?" Respondeu-me: "O que vês estampado em meu rosto é piedade e não receio, como pensaste. Mas vamos, que a viagem é comprida".
Ele entrou, e assim me fez entrar no primeiro círculo, onde o abismo principal principia a estreitar-se. Ouvi, não o costumeiro e lastimoso chorar, mas apenas suspiros que ondulavam no inteiro espaço qual brisa leve. Provinham de um sofrer sem amargura, padecido por grande turba, na qual se misturavam homens, mulheres e crianças.

O grito - Edvard Münch

Disse- me o bom do Mestre: " perguntas que espíritos são estes? É bom que os conheças, antes de seguir adiante. Não pecaram, mas, embora possuindo méritos para entrarem no Céu, faltou-lhes o batismo, umbral da Fé em que, ditoso, crês. Viveram antes do cristianismo, portanto não tributaram a Deus a adoração devida. Eu sou um dos que por este modo penam. Por tal motivo, e não por qualquer defeito, perdemos o Paraíso. A nossa pena é simplesmente esta: arder em desejo, sem a esperança de saciá-lo".
Ouvindo-o, profunda mágoa tomou-me o coração, no que porém fui consolado pelo alteroso valor de muitos espíritos que no Limbo conheci suspensos.
"Dize-me, ó Mestre, dize-me, ó Guia", pedi, buscando robustecer minha fé contra todas as possibilidades de erro no interpretar as coisas que via, "jamais alguém daqui subiu aos Céus, por mérito próprio ou alheio?"
E ele, que bem interpretara a pergunta aflita, respondeu: "Havia pouco que a este sítio eu baixara, quando vi chegar possante guerreiro¹ cingido por triunfal coroa, Libertou das sombras a alma do nosso primeiro pai, e a de Abel, a de Noé, a de Moisés que por Ele legislara e a Ele odedecera, a do patriarca Abraão, a do Rei Davi, Israel com seus descendentes², e de Raquel, por quem batalhou e sofreu tanto. Muitos outros retirou do Limbo para elevar à glória celeste. Antes de Ele vir, no entanto, jamais alguém fora salvo".

¹ Jesus Cristo
² Jacó e Isaac

Olhar- René Magritte
Não havíamos deixado de marchar enquanto ele falava; assim, fôramos penetrando a espessa selva de almas, sempre mais e mais compacta. Não estávamos ainda longe do ponto de partida quando vislumbrei fulgor estranho, que o hemisfério escuro aclarou um pouco³. A certa distância do clarão, pude perceber que caminhávamos para o centro do recinto, onde, à parte encontram-se os nobres pensadores pagãos.
"Ó tu, honra da ciência e da arte, quem são estes que tamanho privilégio alcançaram da turba mantendo-se afastados?" Respondeu-me:
"Por tal forma lá na Terra os seus nomes foram engrandecidos por justa fama, que neste sítio, como vês, são preferidos".
Nisto, ouço, em voz bem clara, dizerem: "Honrai ao altíssimo Poeta; voltou ao nosso convívio a sua sombra, que ausente esteve". Quando a voz calou e silêncio se fez, quatro sombras avançaram em nossa direção. Nem tristeza nem alegria revelavam nos semblantes.
Meu bom Mestre disse-me: "Observa esse que, parecendo reinar sobre os outros, vem à frente deles, empunhando espada. É Homero, dos poetas o soberano. O segundo é o satírico Horácio, que logo ao lado tem Ovídio, vindo por fim Lucano. A voz isolada, que recém ouvimos, é deles, e com tal honra a mim prestando, nobre ação por si vão praticando",
Assim, vi reunida a formosa escola poética desse cantor de tão alto nome que sobre os demais nomes sempre está pairando, qual águia em pleno vôo erguida. Havendo entre si tomado decisão, a mim endereçaram gesto amigável. Vírgilio sorriu, dessa cortesia cativo. Mais alta honra ainda a mim prestaram, quando fizeram-me reunir ao seu alto grêmio, dando-me embora o sexto lugar na comitiva. Caminhamos ao encontro do clarão forte, discorrendo sobre temas que numerar aqui não entendo, por mais sublimes a mim então me parecessem.

³ A luz da filosofia, capaz de iluminar até mesmo um trecho do Inferno. 

Eu e a Aldeia - Marc Chagall
Junto chegamos a alteroso castelo¹¹, rodeado por sete fortes muros e cingido por ribeiro tão estreito quão formoso. Atravessamo-lo como se terra firme fossem suas águas, e cruzei, sempre em tão ilustre companhia, sete portas, chegando a um prado de alegre verdor. Por ali vagavam sombras graves, de magestoso aspecto, que raramente falavam e o faziam sempre com olhos tardos e voz suave. Colocamo-nos em lugar aberto, iluminado e alto, de onde se via a inteira turba daquelas nobres almas. Sobre o verde esmaltado da relva eu divisava egrégias sombras, tão ilustres que ainda agora me comove o recordar quanta alegria, ao vê-las, eu provava.
Percebi Electra, acompanhada por muitos guerreiros, entre os quais Enéias e Heitor; vi César, que para nós dirigia flamejante olhar. Vi também Camila e Pentesileia e o Rei Latino eternecidamente sentado junto de Lavínia. Descobri ainda aquele Bruto que expulsou Tarquínio; e Lucrécia, e Júlia, e Márcia, e Cornélia. Afastado de todos, Saladino. Tomado de respeito, levantei o olhar, pois vislumbrei, por filósos rodeado, o mestre de todos quantos pelo saber se distinguiram¹². Os demais o observam e homenageiam; Platão e Sócrates estavam entre os outros e eram os que mais próximo do mestre se achavam. Demócrito, o que ensinou haver sido o mundo criado por acaso, e Diógenes, Anaxágoras, Tales, Empédocles, Heráclito e Zenão, ali também estavam. E ainda Dioscórides, que afincadamente estudara a Natureza, e Orfeu, e Túlio, o eloquente; e Lino e Sêneca, o moralista. E mais Euclides, o geômetra, Ptolomeu, Hipócrates, Avicena, Galeno, Averroés, o autor de grandes ensaios de Medicina. Relação de todos quantos vi não posso aqui deixar, pois bem longa seria ela e a ser sucinto sontinuamente me obrigo.
Nosso grupo de seis então se desfez. Levou-me o Guia, daquele recinto silente, a outro sítio onde gira um ar fremente e onde luz alguma alumia.


¹¹É o edifício da filosofia. Os sete muros seriam virtudes ( prudência, justiça, fortaleza, temperança, poder, sabedoria, compreensão); as artes liberais (gramática, lógica, retórica, música, aritmética, geometria e astronomia)
¹² Aristóteles



Hieronymus Bosch



29 dezembro 2011

As janelas

Olhando de fora, através de uma janela aberta, nunca se vê tantas coisas como quando se olha por uma janela fechada.

Ubatuba-SP, Praia do Félix-23/12/2011

Não existe cena, mais profunda, mais misteriosa, mais fértil, mais tenebrosa, mais encantada, que uma janela iluminada pela luz de um candelabro.

Ubatuba-SP, Praia do Félix-23/12/2011

O que a gente vê com a luz do Sol é sempre menos interessante do que o que se passa atrás de uma vidraça. Nesse buraco negro ou luminoso a vida passa, alucina e sofre.

Ubatuba-SP, Itaguá-22/12/2011

Além das frestas, das sombras do telhado, vejo uma mulher antiga, envelhecida, sem fortuna, sempre debruçada sobre alguma coisa e confinada dentro da casa.

Ubatuba-SP, Praia do Félix-23/12/2011


Observo sua fisionomia, observo sua vestimenta, seus gestos, e com esse quase nada, re-escrevo a história dessa mulher, ou melhor ainda, a sua lenda, que às vezes reconto a mim mesmo, em lágrimas.


Ubatuba-SP, Praia Vermelha do Norte-25/12/2011

Se fosse um pobre velho, eu também teria narrado a cena com igual facilidade.
E deito-me, com orgulho de ter sentido a vida e o sofrimento dos outros como se fossem meus.

Ubatuba-SP, Praia do Félix-23/12/2011

Pois então, você me dirá: "Será que essa lenda é verdadeira?".
Que importa que a realidade seja fora de mim, se ela me ajuda a viver, a sentir o que eu sou e quem eu sou?

Ubatuba-SP, Itaguá-22/12/2011

Charles Baudelaire no livro O DESEJO DE PINTAR  e outros poemas em prosa. (Simbolismo)

18 dezembro 2011

Cultura


Etmologicamente falando, é um conceito derivado do de natureza. Um de seus significados originais é" lavoura" ou "cultivo agrícola", o cultivo do que cresce naturalmente.


A palavra cultura se origina do verbo latino colo, que significou morar, ocupar, cultivar, lavrar a terra. Transposto para o passado, o adjetivo cultus era atribuído, na Roma arcaica, ao campo já cultivado, à terra que foi lavrada, não apenas no tempo presente, mas sucessivamente, por várias gerações.

Bosch, Hieronymus - "The Seven Deady Sins", c.1485.
A natureza humana não é exatamente o mesmo que uma plantação de beterrabas, mas, como uma plantação precisa ser cultivada - de modo que, assim como a palavra "cultura" nos tranfere do natural para o espiritual, também sugere uma afinidade entre eles.

Picasso, Pablo -" Les Demoiselles d'Avignon", 1907.

Nós nos assemelhamos à natureza, visto que, como ela, temos de ser moldados à força, mas diferimos dela uma vez que podemos fazer isso a nós mesmos, introduzindo assim no mundo um grau de auto-reflexividade a que o resto da natureza não pode aspirar.
Duchamp, Marcel - "Fountain", 1964 (replica of 1917 original)
São os interesses políticos que, geralmente, governam os culturais, e ao fazer isso definem uma versão particular de humanidade.
Kandinsky, Wassily - "Composition VI", 1913

A cultura como orgânica, assim como a cultura como civilidade, paira indecisamente entre faro e valor. Em um sentido, ela não faz mais do que designar uma forma de vida tradicional...
Mas já que a comunidade, tradição, ter raízes, solidariedade são noções que se supõe que aprovemos,

Valentim, Rubem - "Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira", 1978

ou pelo menos supunha-se até o advento do pós-modernismo, poder-se-ia pensar haver algo positivo na mera existência de uma tal forma de vida.

LAM, Wilfredo - "Les noces", 1947

Ou, melhor dizendo, no simples fato da pluradidade de tais formas. É essa fusão do descritivo e do normativo, conservada tanto de "civilização" quanto do sentido universalista de "cultura", que despontará na nossa própria época sob roupagem de relativismo cultural.



Numa sociedade civil, os indivíduos vivem num estado de antagonismo crônico, impelidos por interesses opostos; mas o Estado é aquele âmbito transcendente no qual essas divisões podem ser harmoniosamente reconciliadas.


Para que isso aconteça, contudo, o Estado já tem que ter estado em atividade na sociedade, e esse processo é o que conhecemos como cultura. A cultura é uma espécie de pedagogia ética que nos torna aptos para a cidadania política ao libertar o eu ideal ou coletivo escondido dentro de cada um de nós, um eu que encontra sua representação suprema no âmbito universal do Estado.
Miranda, Walter - "Idolatria Tecnológica VI", 2008

Se o real contém aquilo que o contradiz, então o termo "cultura" está determinado a olhar em duas direções opostas. A descontrução, que mostra como uma situação acaba forçosamente violando a sua própria lógica justamente na tentativa de aderir a ela, é simplesmente um nome mais recente para essa noção tradicional de crítica imanente. Para os românticos radicais, a arte, a imaginação, a cultura folclórica ou comunidades "primitivas" são sinais de uma energia criativa que deve ser estendida à sociedade política como um todo. Para o marxismo, que surge na esteira do romantismo, ela é uma forma bem menos exaltada de energia criativa, aquela da classe operária, que pode transfigurar a própria ordem social da qual é o produto.


*Trechos do livro: A Ideia de Cultura de Terry Eagleton



18 setembro 2011

Estou sendo


1º lugar no Festival de Vídeo do CEU Sapopemba - Jéssica Moura
 "...Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.


- Por que é que você olha tão demoradamente cada pessoa?
Ela corou:
- Não sabia que você estava me observando. Não é por nada que olho: é que eu gosto de ver as pessoas sendo.



Então estranhou-se a si própria e isso parecia levá-la a uma vertigem. É que ela própria, por estranhar-se, estava sendo. Mesmo arriscando que Ulisses percebesse, disse-lhe bem baixo:
- Estou sendo...
- Como? Perguntou ele àquele sussuro de voz de Lóri.
- Nada, não importa.
- Importa sim. Quer fazer o favor de repetir?
Ela se tornou mais humilde, porque já perdera o estranho e encantado momento em que estivera sendo:
- Eu disse para você - Ulisses, estou sendo.
Ele examinou-a e por um momento estranhou-a, aquele rosto familiar de mulher. Ele se estranhou, e entendeu Lóri: ele estava sendo.


Ficaram calados como se os dois pela primeira vez se tivessem encontrado. Estavam sendo.
- Eu também, disse baixo Ulisses.
Ambos sabiam que esse era um grande passo dado na aprendizagem. E não havia  perigo de gastar este sentimento com medo de perdê-lo, porque ser era infinito, de um infinito de ondas do mar. Eu estou sendo, dizia a árvore do jardim.



Eu estou sendo, disse a água verde na piscina. Eu estou sendo, disse o mar azul do Mediterrâneo. Eu estou sendo, disse o nosso mar verde traiçoeiro. Eu estou sendo, disse a aranha, e imobilizou a presa com seu veneno. Eu estou sendo, disse uma criança que escorregara nos ladrilhos do chão e gritara assustada: mamãe! Eu estou sendo, disse a mãe que tinha um filho que esgorregava nos ladrilhos que circundavam a piscina. Mas a luz se aquietava para a noite e eles estranharam, a luz crepuscular. Lóri estava fascinada pelo encontro de si mesma, ela se fascinava e quase se hipnotizava.



Ali estavam. Até que a luz que precedia o crepúsculo foi se esgarçando entre penumbras e maiores transparências, e quase ausência, sem que aquela espécie de neutralidade fosse ainda tocada pela escuridão: não parecia crespúsculo e sim o mais imponderável de um amanhecer:


Tudo aquilo era absolutamente impossível, por isso é que Lóri sabia que via. Se fosse o razoável, ela de nada saberia.
E quando tudo começou a ficar inacreditável, a noite desceu.

Trecho do livro: UMA APRENDIZAGEM OU LIVRO DOS PRAZERES de Clarice Lispector - páginas 71 e 72

27 março 2011

Plus ultra!

"Deus engedrou um ovo, o ovo engedrou a espada, a espada engedrou Davi, Davi engedrou a púrpura, a púrpura engedrou o duque, o duque engedrou o marquês, o marquês engedrou o conde, que sou eu."
Assis, Machado de, 1839-1908 - O Alienista/Machado de Assis - pág. 22 - Editora Komedi 2009



Untitled Work-Joan Miró
 



Ode ao burguês


Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o extase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
"–Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
–Um colar... –Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burgês!...  

Paulicéia desvairada (1922) - Mário de Andrade



La rumeur de la terre, 1950 - Wilfredo Lam

"Quanto mais perto ficamos, mais longe ficamos. Quanto mais distante ficamos, mais distantes ficamos mesmo."         José Rosa


Salvador Dalí


"A única diferença entre um louco e eu, é que eu não sou louco."

"A loucura é uma ilha perdida no oceano da razão."
Machado de Assis


18 janeiro 2011

As Intermitências da Morte


"Da primeira reunião da comissão interdisciplinar tudo se pode dizer menos que tenha corrido bem. A culpa, se o pesado termo tem aqui cabimento, teve-a o dramático memorando levado ao governo pelos lares do ocaso, em especial aquela cominatória frase que o rematava, Antes a morte, senhor primeiro-ministro, antes a morte que tal sorte. Quando os filósofos, divididos, como sempre, em pessimistas e optimistas, uns carrancudos, outros risonhos, se dispunham a recomeçar pela milésima vez a cediça disputa, transferida para a questão que ali os chamara, se reduziria no final, com toda a probalidade, a um mero inventário das vantagens ou desvantagens de estar morto ou de viver para sempre, os delegados das religiões apresentaram-se formando uma frente unida comum com a qual aspiravam a estabelecer o debate no único terreno dialéctico que lhes interessava, isto é, a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfema como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido. Não se tratava de uma atitude nova, o próprio cardeal já havia apontado o dedo ao busílis que significaria esta versão teológica da quadratura do círculo quando, na sua conversação telefónica com o primeiro-ministro, admitiu, ainda que por palavras muito menos claras, que se se acabasse a morte não poderia haver ressurreição, e que se não houvesse ressurreição, então não teria sentido haver igreja. Ora, sendo esta, pública e notoriamente, o único instrumento de lavoura de que deus parecia dispor na terra para lavrar os caminhos que deveriam conduzir ao seu reino, a conclusão óbvia e irrebatível é de que toda a história santa termina inevitavelmente num beco sem saída. Este ácido argumento saiu da boca do mais velho dos filósofos pessimistas, que não ficou por aqui e acrescentou acto contínuo, As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca. Os delegados das religiões não se deram ao incómido de protestar. Pelo contrário, um deles, conceituado integrante do sector católico, disse, Tem razão, senhor filósofo, é para isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a morte como a libertação, O paraíso, Paraíso ou inferno, ou cousa nenhuma, o que se passe depois da morte importa-nos muito menos que o que geralmente se crê, a religião, senhor filósofo, é um assunto da terra, não tem nada que ver com o céu, Não foi o que nos habituaram a ouvir, Algo teríamos que dizer para tornar atractiva a mercadoria, Isso quer dizer que em realidade não acreditam na vida eterna, Fazemos de conta. Durante um minuto ninguém falou. O mais velho dos pessimistas deixou que um vago e suave sorriso se lhe espalhasse na cara e mostrou o ar de quem tinha acabado de ver coroada de êxito uma difícil experiência de laboratório. Sendo assim, interveio um filósofo da ala optimista, porquê vos assusta tanto que a morte tenha acabado, Não sabemos se acabou, sabemos apenas que deixou de matar, não é mesmo, De acordo, mas, uma vez que essa dúvida não está resolvida, mantenho a pergunta, Porque se os seres humanos não morressem tudo passaria a ser permitido, E isso seria mau, perguntou o filósofo velho, Tanto como não permitir nada. Houve um novo silêncio. Aos oito homens sentados ao redor da mesa tinha sido encomendado que reflectissem sobre as consequências de um futuro sem morte e que construíssem a partir dos dados do presente uma previsão plausível das novas questões velhas.


Melhor então seria não fazer nada, disse um dos filósofos optimistas, os problemas do futuro, o futuro que os resolva, O pior é que o futuro é já hoje, disse um dos pessimistas, temos aqui, entre outros, os memorandos elaborados pelos chamados lares do feliz ocaso, pelos hospitais, pelas agências funerárias, pelas companhias de seguro, e, salvo o caso destas, que sempre hão-de encontrar maneira de tirar proveito de qualquer situação, há que reconhecer que as perspectivas não se limitam a ser sombrias, são catastróficas, terríveis, excedem em perigos tudo o que a mais delirante imaginação pudesse conceber, Sem pretender ser irónico, o que nas actuais circunstâncias seria péssimo gosto, observou um integrante não menos conceituado do sector protestante, parece-me que esta comissão já nasceu morta, Os lares do feliz ocaso têm razão, antes a morte que tal sorte, disse o porta-voz dos católicos, Que pensam então fazer, perguntou o pessimista mais idoso, além de propor a extinção imediata da comissão, como parece ser o vosso desejo, Por nossa parte, igreja católica, apostólica e romana, organizaremos uma campanha nacional de orações para rogar a deus que providencie o regresso da morte o mais rapidamente possível a fim de poupar a pobre humanidade aos piores horrores, Deus tem autoridade sobre a morte, perguntou um dos optimistas, São as duas caras da mesma moeda, de um lado o rei, do outro a coroa, Sendo assim, talvez tenha sido por ordem de deus que a morte se retirou, A seu tempo conheceremos os motivos desta provação, entretanto vamos pôr os rosários a trabalhar,


Nós faremos o mesmo, refiro-me às orações, claro está, não aos rosários, sorriou o protestante, E também vamos fazer sair à rua em todo o país procissões a pedir a morte, da mesma maneira que já as fazíamos ad petendam pluviam, para pedir chuva, traduziu o católico, A tanto não chegaremos nós, essas procissões nunca fizeram parte das manias que cultivamos, tornou a sorrir o protestante. E nós, perguntou um dos filósofos optimistas em um tom que parecia anunciar o seu próximo ingresso nas fileiras contrárias, que vamos fazer a partir de agora, quando parece que todas as portas se fecharam, Para começar, levantar a sessão, respondeu o mais velho, E depois, Continuar a filosofar, já que nascemos para isso, e ainda que seja sobre o vazio, Para quê, não sei, Então porquê, Porque a filosofia precisa tanto da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur de montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer."


As Intermitências da morte/José Saramago -  Companhia das Letras, 2005 - pg. 35, 36, 37, 38

30 outubro 2010

29ª Bienal de São Paulo

Michel Racine/Béatrice Saurel. Piquenique no Ibirapuera, 2010
" Todos devem deixar algo para trás quando morrem, dizia meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa ou parede construída, um par de sapatos. Ou um jardim. Algo que sua mão tenha tocado de algum modo, para que sua alma tenha para onde ir quando você morrer. E quando as pessoas olharem para aquela árvore ou aquela flor que você plantou, você estará ali.
Beatriz Milhares. Girassóis, 2010
Não importa o que você faça, dizia ele, desde que você transforme alguma coisa, do jeito que era antes de você tocá-la, em algo que é como você depois que suas mãos passaram por ela. A diferença entre o homem que apenas apara gramados e um verdadeiro jardineiro está no toque, dizia ele. O aparador de grama podia muito bem não ter estado ali; o jardineiro estará lá durante uma vida inteira.

Nuno Ramos. Bandeira Branca. 2010
Certa vez, há cinquenta anos, meu avô me mostrou alguns filmes sobre os foguetes V-2. Você já viu alguma vez o cogumelo de uma bomba atômica, de uma altitude de trezentos mil metros? É uma cabeça de alfinete, não é nada. Com a imensidão ao redor.

Meu avô passou o filme do foguete V-2 umas dez vezes, e depois manifestou a esperança de que, algum dia, nossas cidades fossem mais espalhadas, deixando mais espaço para o verde, a terra e o campo, para lembrar às pessoas que nos cabia um pequeno espaço na terra, e que sobrevivemos nessa vastidão que pode tomar de volta o que ela deu com a mesma facilidade com que sopra seu hálito sobre nós ou envia o mar para nos dizer que não somos tão grandes assim.

Quando nos esquecermos quanto a natureza está próxima na noite, dizia meu avô, algum dia ela vai entrar e nos pegar, pois teremos esquecido quão terrível e real ela pode ser. Percebe?

Lygia Pape. Língua Apunhalada, 1968 

Faz muitos anos que meu avô morreu, mas se você levantasse a tampa de meu crânio, por Deus, você encontraria, nas circunvoluções de meu cérebro, as marcas profundas de seus polegares. Ele me tocou.

José Resende. Homem ao Horizonte Longíquo. 1967
Como eu já disse, ele era escultor. "Odeio um romano chamado Status Quo!", disse-me ele. "Encha seus olhos de admiração", dizia ele, "viva como se fosse cair morto daqui a dez segundos. Veja o mundo.

Tatiana Trouvé. 300 pontos rumo ao infinito. 2009
Ele é mais fantástico do que qualquer sonho que se possa produzir nas fábricas. Não peça segurança, jamais houve semelhante animal.

Amélia Toledo. Campos de Cor. 1969/2010
E se houvesse, seria parente do grande bicho-preguiça pendurando de cabeça para baixo numa árvore o dia inteiro, todos os dias, a vida inteira dormindo. "Para o inferno com isso", dizia ele, "balance a árvore e derrube o grande bicho-preguiça de bunda no chão."

Hélio Oiticica, Seja Marginal, Seja Herói,1968.  Presta homenagem a Cara de Cavalo e a Mineirinho, dois bandidos violentamente mortos pela polícia do Rio de Janeiro, confrontando as ideias convencionais de justo e errado, de exercício legítimo de poder e abuso autoritário.


E a guerra começou e terminou naquele instante."


BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451, p.192, 193. Editora Globo - São Paulo, 7ª reimpressão, 2009

22 agosto 2009

Ópera Urbana


Ópera Urbana é uma coleção de livros das edições SESC e da editora Cossac Naify, composta por quatro volumes: Cidade dos deitados, Surfando na Marquise, Avenida Paulista e Montanha Russa. A coleção trata do quotidiano da vida urbana e, para divulgá-la, as editoras lançaram um site interativo aberto a todos os públicos.


Para participar acesse o site http://www.operaurbana.com.br/ e procure no link Escolas as tarefas propostas no nome do professor José César Bardelli. Antes de publicar no site, farei um filtro com as melhores tarefas adequadas ao tema. Portanto, não envie diretamente para o site, envie para mim sua foto, texto ou vídeo. A participação valerá nota na disciplina de Arte no 3º bimestre. Escolha apenas uma dentre as tarefas propostas.


Fotos Gislene Bosnich Estação da Luz

Você verá que, apesar de interessante, o conteúdo dos livros é um tanto elitista, pois, as histórias se concentram no Ipirapuera, Av Paulista, Vila Mariana e Centro de São Paulo. Isto também se percebe pela entrevista dos autores. Não estou dizendo que você precisa abordar a periferia, mas que não é necessário se prender ao conteúdo dos livros. Seja criativo, leia bem a proposta e todo o conteúdo do site antes. A tarefa está relacionada com o conteúdo programático, em particular, o estudo do espaço, as intervenções artísticas, artes visuais e novas tecnologias.

Coleção Ópera Urbana