07 abril 2012

La divina commedia

CANTO IV
Violento  estrondo interrompeu aquele torpor profundo, desportando-me qual homem que em sobressalto acorda. Movi o olhar pelo que havia ao meu redor, ao longe e perto. De pé me ergui, procurando conhecer o lugar onde me encontrava. Eis a verdade: descobri-me à borda de insondável e tenebroso abismo, do qual subiam brados e infindos ais. Tão escuro, profundo e nebuloso era tal pélago que, por mais aceso eu nele fixasse o olhar, coisa alguma reconhecia.
"Agora, deçamos ao mundo das trevas", principiou a dizer o Poeta, soturnamente. "Irei à frente, serás o segundo."
Notando no seu rosto palidez extrema, perguntei: "Como poderei seguir-te, se te vejo vencido pelo temor, a ti de quem sempre espero ânimo?" Respondeu-me: "O que vês estampado em meu rosto é piedade e não receio, como pensaste. Mas vamos, que a viagem é comprida".
Ele entrou, e assim me fez entrar no primeiro círculo, onde o abismo principal principia a estreitar-se. Ouvi, não o costumeiro e lastimoso chorar, mas apenas suspiros que ondulavam no inteiro espaço qual brisa leve. Provinham de um sofrer sem amargura, padecido por grande turba, na qual se misturavam homens, mulheres e crianças.

O grito - Edvard Münch

Disse- me o bom do Mestre: " perguntas que espíritos são estes? É bom que os conheças, antes de seguir adiante. Não pecaram, mas, embora possuindo méritos para entrarem no Céu, faltou-lhes o batismo, umbral da Fé em que, ditoso, crês. Viveram antes do cristianismo, portanto não tributaram a Deus a adoração devida. Eu sou um dos que por este modo penam. Por tal motivo, e não por qualquer defeito, perdemos o Paraíso. A nossa pena é simplesmente esta: arder em desejo, sem a esperança de saciá-lo".
Ouvindo-o, profunda mágoa tomou-me o coração, no que porém fui consolado pelo alteroso valor de muitos espíritos que no Limbo conheci suspensos.
"Dize-me, ó Mestre, dize-me, ó Guia", pedi, buscando robustecer minha fé contra todas as possibilidades de erro no interpretar as coisas que via, "jamais alguém daqui subiu aos Céus, por mérito próprio ou alheio?"
E ele, que bem interpretara a pergunta aflita, respondeu: "Havia pouco que a este sítio eu baixara, quando vi chegar possante guerreiro¹ cingido por triunfal coroa, Libertou das sombras a alma do nosso primeiro pai, e a de Abel, a de Noé, a de Moisés que por Ele legislara e a Ele odedecera, a do patriarca Abraão, a do Rei Davi, Israel com seus descendentes², e de Raquel, por quem batalhou e sofreu tanto. Muitos outros retirou do Limbo para elevar à glória celeste. Antes de Ele vir, no entanto, jamais alguém fora salvo".

¹ Jesus Cristo
² Jacó e Isaac

Olhar- René Magritte
Não havíamos deixado de marchar enquanto ele falava; assim, fôramos penetrando a espessa selva de almas, sempre mais e mais compacta. Não estávamos ainda longe do ponto de partida quando vislumbrei fulgor estranho, que o hemisfério escuro aclarou um pouco³. A certa distância do clarão, pude perceber que caminhávamos para o centro do recinto, onde, à parte encontram-se os nobres pensadores pagãos.
"Ó tu, honra da ciência e da arte, quem são estes que tamanho privilégio alcançaram da turba mantendo-se afastados?" Respondeu-me:
"Por tal forma lá na Terra os seus nomes foram engrandecidos por justa fama, que neste sítio, como vês, são preferidos".
Nisto, ouço, em voz bem clara, dizerem: "Honrai ao altíssimo Poeta; voltou ao nosso convívio a sua sombra, que ausente esteve". Quando a voz calou e silêncio se fez, quatro sombras avançaram em nossa direção. Nem tristeza nem alegria revelavam nos semblantes.
Meu bom Mestre disse-me: "Observa esse que, parecendo reinar sobre os outros, vem à frente deles, empunhando espada. É Homero, dos poetas o soberano. O segundo é o satírico Horácio, que logo ao lado tem Ovídio, vindo por fim Lucano. A voz isolada, que recém ouvimos, é deles, e com tal honra a mim prestando, nobre ação por si vão praticando",
Assim, vi reunida a formosa escola poética desse cantor de tão alto nome que sobre os demais nomes sempre está pairando, qual águia em pleno vôo erguida. Havendo entre si tomado decisão, a mim endereçaram gesto amigável. Vírgilio sorriu, dessa cortesia cativo. Mais alta honra ainda a mim prestaram, quando fizeram-me reunir ao seu alto grêmio, dando-me embora o sexto lugar na comitiva. Caminhamos ao encontro do clarão forte, discorrendo sobre temas que numerar aqui não entendo, por mais sublimes a mim então me parecessem.

³ A luz da filosofia, capaz de iluminar até mesmo um trecho do Inferno. 

Eu e a Aldeia - Marc Chagall
Junto chegamos a alteroso castelo¹¹, rodeado por sete fortes muros e cingido por ribeiro tão estreito quão formoso. Atravessamo-lo como se terra firme fossem suas águas, e cruzei, sempre em tão ilustre companhia, sete portas, chegando a um prado de alegre verdor. Por ali vagavam sombras graves, de magestoso aspecto, que raramente falavam e o faziam sempre com olhos tardos e voz suave. Colocamo-nos em lugar aberto, iluminado e alto, de onde se via a inteira turba daquelas nobres almas. Sobre o verde esmaltado da relva eu divisava egrégias sombras, tão ilustres que ainda agora me comove o recordar quanta alegria, ao vê-las, eu provava.
Percebi Electra, acompanhada por muitos guerreiros, entre os quais Enéias e Heitor; vi César, que para nós dirigia flamejante olhar. Vi também Camila e Pentesileia e o Rei Latino eternecidamente sentado junto de Lavínia. Descobri ainda aquele Bruto que expulsou Tarquínio; e Lucrécia, e Júlia, e Márcia, e Cornélia. Afastado de todos, Saladino. Tomado de respeito, levantei o olhar, pois vislumbrei, por filósos rodeado, o mestre de todos quantos pelo saber se distinguiram¹². Os demais o observam e homenageiam; Platão e Sócrates estavam entre os outros e eram os que mais próximo do mestre se achavam. Demócrito, o que ensinou haver sido o mundo criado por acaso, e Diógenes, Anaxágoras, Tales, Empédocles, Heráclito e Zenão, ali também estavam. E ainda Dioscórides, que afincadamente estudara a Natureza, e Orfeu, e Túlio, o eloquente; e Lino e Sêneca, o moralista. E mais Euclides, o geômetra, Ptolomeu, Hipócrates, Avicena, Galeno, Averroés, o autor de grandes ensaios de Medicina. Relação de todos quantos vi não posso aqui deixar, pois bem longa seria ela e a ser sucinto sontinuamente me obrigo.
Nosso grupo de seis então se desfez. Levou-me o Guia, daquele recinto silente, a outro sítio onde gira um ar fremente e onde luz alguma alumia.


¹¹É o edifício da filosofia. Os sete muros seriam virtudes ( prudência, justiça, fortaleza, temperança, poder, sabedoria, compreensão); as artes liberais (gramática, lógica, retórica, música, aritmética, geometria e astronomia)
¹² Aristóteles



Hieronymus Bosch