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Michel Racine/Béatrice Saurel. Piquenique no Ibirapuera, 2010 |
" Todos devem deixar algo para trás quando morrem, dizia meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa ou parede construída, um par de sapatos. Ou um jardim. Algo que sua mão tenha tocado de algum modo, para que sua alma tenha para onde ir quando você morrer. E quando as pessoas olharem para aquela árvore ou aquela flor que você plantou, você estará ali.
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Beatriz Milhares. Girassóis, 2010 |
Não importa o que você faça, dizia ele, desde que você transforme alguma coisa, do jeito que era antes de você tocá-la, em algo que é como você depois que suas mãos passaram por ela. A diferença entre o homem que apenas apara gramados e um verdadeiro jardineiro está no toque, dizia ele. O aparador de grama podia muito bem não ter estado ali; o jardineiro estará lá durante uma vida inteira.
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Nuno Ramos. Bandeira Branca. 2010 |
Certa vez, há cinquenta anos, meu avô me mostrou alguns filmes sobre os foguetes V-2. Você já viu alguma vez o cogumelo de uma bomba atômica, de uma altitude de trezentos mil metros? É uma cabeça de alfinete, não é nada. Com a imensidão ao redor.
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Meu avô passou o filme do foguete V-2 umas dez vezes, e depois manifestou a esperança de que, algum dia, nossas cidades fossem mais espalhadas, deixando mais espaço para o verde, a terra e o campo, para lembrar às pessoas que nos cabia um pequeno espaço na terra, e que sobrevivemos nessa vastidão que pode tomar de volta o que ela deu com a mesma facilidade com que sopra seu hálito sobre nós ou envia o mar para nos dizer que não somos tão grandes assim.
Quando nos esquecermos quanto a natureza está próxima na noite, dizia meu avô, algum dia ela vai entrar e nos pegar, pois teremos esquecido quão terrível e real ela pode ser. Percebe?
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Lygia Pape. Língua Apunhalada, 1968 |
Faz muitos anos que meu avô morreu, mas se você levantasse a tampa de meu crânio, por Deus, você encontraria, nas circunvoluções de meu cérebro, as marcas profundas de seus polegares. Ele me tocou.
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José Resende. Homem ao Horizonte Longíquo. 1967 |
Como eu já disse, ele era escultor. "Odeio um romano chamado Status Quo!", disse-me ele. "Encha seus olhos de admiração", dizia ele, "viva como se fosse cair morto daqui a dez segundos. Veja o mundo.
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Tatiana Trouvé. 300 pontos rumo ao infinito. 2009 |
Ele é mais fantástico do que qualquer sonho que se possa produzir nas fábricas. Não peça segurança, jamais houve semelhante animal.
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Amélia Toledo. Campos de Cor. 1969/2010 |
E se houvesse, seria parente do grande bicho-preguiça pendurando de cabeça para baixo numa árvore o dia inteiro, todos os dias, a vida inteira dormindo. "Para o inferno com isso", dizia ele, "balance a árvore e derrube o grande bicho-preguiça de bunda no chão."
E a guerra começou e terminou naquele instante."
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451, p.192, 193. Editora Globo - São Paulo, 7ª reimpressão, 2009